segunda-feira, 21 de agosto de 2000

Como se acaba com a miséria no Brasil

Viver no no Brasil e ter consciência política e social é no mínimo um sério exercício de controle dos nervos. Basta andar pelas ruas para ver a crueza da miséria do povo e ter que controlar a indignação. Entretanto, muito pior é quando andamos pelas ruas e não vemos miséria alguma! Imediatamente, nosso cérebro começa a conjecturar quais serão as perversidades que as elites estarão utilizando para se livrarem da incômoda presença dos miseráveis...

E se, além disso, temos acesso à Internet e recebemos as notícias verdadeiras de todo o Brasil (e pior, de todo o mundo...), tal exercício de controle dos nervos se transforma em uma verdadeira tortura mental. A todo dia, recebemos várias e várias notícias de injustiças contra os humildes, de crimes impunes dos poderosos, de falcatruas dos governantes, da crueldade dos juízes, da corrupção dos parlamentares, e também da extrema covardia e venalidade da assim chamada "grande imprensa" que divulga apenas o que os poderesos pagam para ser divulgado.

Sinceramente, prezados leitores, eu não divulgo para vocês nem 1% das notícias desse tipo que chegam à minha caixa postal, pois fico com medo de matá-los (enquanto leitores, é claro) de "overdose de indignação". Mas tais notícias continuam chegando e chegando, em torrente cada vez mais forte.

Podemos, entretanto, encarar tal fato pelo lado positivo. Anteriormente à Internet, só ficávamos sabendo aquilo que víamos pessoalmente, escutávamos de outros ou líamos na imprensa alternativa. Hoje, quem procura acha na Internet, e acaba sabendo de quase tudo o que realmente se passa. Esse é o começo, a saturação da denúncias deverá fazer surgir uma nova geração de brasileiros que não se vendem a preço algum (como tantos que já existiram no Brasil e no mundo) e que irão levantar todo nosso povo a dar um fim nessa situação de iniquidade.

Até porque as notícias de lutas e de vitórias também chegam via Internet.

Uma nova geração de brasileiros na qual eu quero me incluir e tenho certeza de que todos vocês prezad(o/a)s leitores irão se incluir também. Uma geração que faça da política não um modo de vida para o enriquecimento fácil ou para a estabilidade medíocre dos "cargos de terceiro escalão" mas sim que faça uma ativa política visando nada mais nada menos que a abolição da escravatura capitalista em que vivemos. Em outras palavras, uma geração que retome a luta pelo Socialismo e que saiba analisar a História para não cometer os mesmos erros.

Segue abaixo mais uma denúncia da crueldade dos governantes no Brasil. Já enviei para vocês uma denúncia de como os sem-teto de Salvador são tratados pelo prefeito de ACM, o boneco ventríloco Embassay, que se encontra à frente do poder executivo da capital baiana. Agora o drama se repete na capital de Santa Catarina, onde reinam o casal de assassinos-do-povo Espiridião e Ângela Amin.

Violência, ameaças e extermínio em Florianópolis
Elaine Tavares

Os olhos escuros se movimentam ligeiros. As mãos se movem num vai-e-vem incessante. Há medo no rosto moreno. José tem 28 anos e uma longa história de menino e morador de rua. Desde os nove vive pelos caminhos mas nunca sentiu tanto medo como agora. Ele mora nas ruas de Florianópolis, uma espécie de ilha mágica no sul do Brasil.

Mágica para poucos, porque os pobres, os feios, sujos e maltrapilhos, esses estão fadados ao extermínio desde que a prefeitura comandada por Angela Amin [esposa de Esperidião Amin, governador de Santa Catarina, do PPB partido que substituiu o PDS da Ditadura Militar] importou de Nova Iorque o plano de "Tolerância Zero". José atualmente está escondido num "cafofo" porque não tem mais seus documentos. Segundo ele, foram rasgados por dois policiais numa ronda durante a madrugada. "Eles chegam, pedem o documento e a gente tem que dá. Aí eles rasgam e vão embora. Depois eles voltam e pedem de novo, a gente não tem, então vai preso. E lá dentro come o pau", diz.

Mas não é só isso. Ele conta ainda que, durante a noite, as assistentes sociais da prefeitura vêm com soldados e queimam os cobertores, sapatos e roupas de quem está dormindo na rua. "As minhas coisas foram todas queimadas", completa. Na prefeitura as assistentes sociais não falam sobre o assunto. "É complicado", diz, confusa, uma delas, indicando o nome da chefe para falar. Esta, procurada inúmeras vezes, não foi encontrada. O chefe do departamento, também procurado insistentemente, não deu retorno nenhuma vez.

A rotina do medo também já parte da vida de Cláudia Rosa da Cruz Portela, uma mulher de olhar vivo e firme. Ela criou, junto com um amigo, Roberto, um abrigo para proteger os moradores de rua da sanha da polícia e confirma as histórias de José. "As coisas são muito piores, estão acontecendo assassinatos. Teve um garoto, o Jacson dos Santos, de 22 anos, que foi morto de tanta porrada, estourou o baço. Pegaram ele no carnaval deste ano, com uma ponta de maconha no bolso. Meteram dentro da viatura, jogaram gás lacrimogêneo dentro e depois acabaram com ele na delegacia. Com medo, inventaram um nome falso pra ele, dizendo que chamava Moisés de Arruda".

O caso da morte de Jacson teve uma testemunha, a mulher dele, grávida de sete meses, que está sob proteção no abrigo. Ela conta que Jacson era de São Paulo e muitas vezes chorava de saudade da mãe. "Agora tá lá no necrotério, e vai ser enterrado como indigente. Por isso estamos numa luta pra descobrir a mãe dele que chama Célis dos Santos e mora em São Paulo", diz Cláudia.

Outro caso escabroso é o de André, também de 22 anos, morto à pauladas. Duas testemunhas, também guardadas pelo pessoal do abrigo, contam que ele tinha descido do morro com crack e não pagou o "pedágio" para os policiais. Estes o emboscaram embaixo da ponte Colombo Sales, onde morava, e arrebentaram sua cabeça. Tinha 20 reais no bolso quando o encontraram. A versão oficial é de que ele caiu da ponte mas as fotos do cadáver mostram que não foi bem assim.

Nos últimos quatro anos mais de 100 dos 260 moradores de rua de Florianópolis já morreram ou desapareceram. Alguns por doença mas boa parte deles foi vítima de violência. Quem denuncia é a Rede Solidárias dos Movimentos Sociais que já encaminhou documentação para organizações de direitos humanos de mais de 70 países. No dossiê eles contam dos assassinatos, dos Boletins de Ocorrências envolvendo moradores de rua que ficam parados nas gavetas das delegacias, da violência praticada por policiais P2, à paisana, dos estupros, humilhações, extorsões e atos de pura maldade praticados contra os que vivem nas ruas.

Intolerância Dez

A caminhada de ocultamento da pobreza na cidade de Florianópolis não acontece unicamente na madrugada, com violências escondidas e assassinatos misteriosos. Ela também se dá às claras, na luz do dia e sob as câmeras da imprensa que parece fazer coro ao processo de extermínio dos pobres. Primeiro foram os meninos de rua, banidos e maltratados. Tanto que um grupo de pessoas ligadas a Universidade Federal decidiu criar um movimento em defesa das crianças, o Pandorgas Partidas.

Depois foi a vez da expulsão dos artesãos da Praça XV, um grupo de artistas e hippies , 57 pessoas ao todo, que há mais de 25 ocupava o espaço da praça central para a venda de artesanato e arte. Com a desculpa de "fazer uma reforma", todos eles foram arrastados pela polícia, impedidos de trabalhar e deslocados para dentro do terminal de ônibus. A praça foi coberta com tapumes causando comoção em toda a cidade. "Na verdade o que a prefeitura queria era 'limpar a sujeira', que é como eles chamam os artesãos, do centro da cidade", diz Rui Ricardo, da Rede de Solidariedade. "Eu pertenço ao movimento hippie desde 1970, sempre ganhei minha vida honestamente. Só não faço parte do sistema, porque tenho de ser punido por isso?", reclama o artesão Manuel Dodi.

Também, na mesma linha, de limpeza do centro , foram demolidos vários quiosques, de pequenos comerciantes, em frente à Praça XV. Ali se concentrava grande parte das pessoas que circulavam na direção do terminal de ônibus. O argumento legal da prefeitura é de que acabou o prazo de licença. Mas ao contrário do que aconteceu com os empresários do transporte coletivo, que tiveram seu prazo renovado por mais 20 anos, sem licitação, os comerciantes dos quiosques não puderam nem negociar. Foram arrancados violentamente do local pela policia militar.

A Via Expressa, estrada que liga a BR 101 ao centro da cidade é outro ponto crítico para o "projeto limpeza". Lá existe uma área de ocupação com mais de 83 famílias. Visando vencê-las pelo cansaço, a prefeitura proibiu que fossem construídos banheiros ou que tivessem acesso a água e luz. Os banheiros que a comunidade tentou construir foram demolidos.

Nas comunidades empobrecidas a intimidação e a violência também são rotina, denuncia a Rede, e nem mesmo os movimentos organizados escapam. A passeata pacífica de protesto dos quinhentos anos foi reprimida violentamente. Um homem foi ferido no rosto, à queima-roupa, com um tiro de borracha que lhe arrebentou o maxilar.

Qualquer protesto já mobiliza a tropa de elite, com gases, spray de pimenta e balas de borracha. Policias militares que fazem a ronda durante a noite intimidam e ameaçam. Até as prostitutas históricas da rua Conselheiro Mafra foram ameaçadas. Só que elas, arquivos vivos de grandes figuras, reagiram, fizeram passeata junto com os moradores de rua e avisaram: "Não se metam com nós". Por enquanto estão à salvo.

O grande problema, segundo Rui Ricardo, um dos integrantes da Rede de Solidariedade, é que tudo isso acontece e praticamente ninguém fica sabendo. "Há um pacto de silêncio por parte da imprensa que não divulga essas coisas. Ligações perigosas com o governo que fazem da sociedade refém. Nem as denúncias à OAB surtem efeito", diz.

E enquanto tudo isso acontece as pessoas que lutam, quase que solitariamente contra esses abusos vão vivendo no medo. Cláudia, dona do abrigo, diz que tem três filhos pequenos e sabe que eles correm risco. O marido dela, há pouco tempo foi na delegacia denunciar o espancamento de uma menina por um policial e ouviu um dos soldados dizer em tom de ameaça: "vamos te pegar". A própria Cláudia já foi avisada por uma policial fardada: "você já demorou pra morrer". Dois de seus companheiros no abrigo foram detidos por soldados militares e levados para o Copom com intimidações e ameaças.

A resposta à tudo isso veio do governador Esperidião Amin, marido da prefeita, que condecorou o comandante da Policia Militar com uma comenda dizendo que esta é melhor polícia do Brasil. Resta saber para quem! Agora , a esperança dos integrantes da Rede de Solidariedade dos Movimentos Sociais é de que a denúncia feita internacionalmente provoque alguma mudança nesse quadro. Se não, a prefeitura vai finalmente acabar com a pobreza, eliminando todos aqueles que não estiverem metidos no modelito 'gente de bem'. Segundo Rui, alguns efeitos das denúncias já estão surgindo, vários e-mails de entidades internacionais chegam à prefeitura e a proximidade com as eleições está fazendo com que "as maldades" desacelerem.

Um grupo de policiais militares, chamados de "os doze apóstolos", foi detido sob acusação de extorsão e violência. O caso se arrasta devagar, com divulgação discreta da imprensa, e não há certeza de punição. Por isso é preciso ficar de olho. Como os moradores de rua são seres praticamente prescindidos pela maioria da população, as ações de "limpeza" podem continuar na calada da noite.

Elaine Tavares é Jornalista na UFSC e educadora na Univali.