segunda-feira, 3 de outubro de 2005

O conceito de mais malia e a privatização da eletricidade no Brasil

Segue abaixo o primeiro de dois brilhantes textos de César Benjamin e Rômulo Tavares Ribeiro. Li o texto e, quanto mais lia, mais me surpreendia como são espertos os atuais legais proprietários jurídicos dos meios de produção e distribuição de energia elétrica no Brasil, Planeta Terra. Os textos deixaram-me, na verdade, boquiaberto, "o queixo caiu".

Os anônimos proprietários do setor elétrico brasileiro, os donos das ações grupos que controlam as ações da Light, juntamente com seus amigos governantes do PSDB e do PT, dão verdadeiras aulas de como roubar tanto o dinheiro público como o dinheiro particular de cada um que necessite de energia elétrica, ou seja, de praticamente todos nós!

Os textos levam a uma reflexão metodológica. Os ideólogos pós modernos defendem que a sociedade se complexificado a tal ponto naquilo que chamam de "sociedade pós industrial" que o trabalho humano teria cessado de existir como o elemento em torno do qual toda a sociedade funciona - atualmente viver-se-ia na "sociedade da informação". Coerentemente com sua caracterização, decretaram pela "penúltima" vez (nesse tipo de coisa, nunca há uma "última" vez) a falência das categorias marxistas de análise econômica. Mais valia, por exemplo, seria atualmente um conceito inaplicável à realidade, uma vez que seria impossível demonstrar como concretamente se extrai e se acumula mais valia na complexa sociedade atual. Hoje, segundo tais ideológos, não mais exisitiria a mais valia, muito menos as classes sociais, havendo apenas, portanto, "cidadãos" iguais entre si perante a lei.

Marx explicou detalhadamente como funciona a mais valia na esfera da produção. No sentido estrito da palavra, mais valia é a apropriação indevida dos produtos do trabalho humano, apropriação essa que ocorre durante a própria produção de tais produtos, também chamados de mercadorias. O operário vende seu trabalho ao industrial, mas esse trabalho agrega às matérias primas um valor muito maior do que o preço desse trabalho. A diferença entre a quantia que o operário recebe em dinheiro por seu trabalho e a quantia que o industrial recebe em dinheiro pela mercadoria produzida por aquele trabalho e vendida no mercado é chamada de mais valia. O dinheiro assim acumulado se transforma em capital, o qual permite ao burguês manter e fazer aumentar os meios de produção do qual é proprietário.

Em sentido lato, mais valia pode ser definida como a apropriação indevida, por terceiros, dos produtos do trabalho realizado pelos seres humanos. Esse mecanismo atua sobre todos os que sobrevivem graças a sua própria força de trabalho corporal e intelectual. Nas condições de um Estado burguês, onde o estatuto jurídico da propriedade privada dos meios de produção e troca é defendido, no limite, através da força das armas, mais valia é o assalto legal ao trabalho humano, uma vez que essa apropriação indevida é garantida institucionalmente pela força das armas defensoras de tal estatuto jurídico.

De fato, os seres humanos trocam trabalho entre si, o qual pode ser consubstanciado em coisas ou em serviços - mercadorias - e tal troca é contabilizada através do dinheiro. Cada um trabalha e recebe em troca dinheiro, que troca pelos produtos do trabalho alheio. Ocorre que a quantidade de dinheiro que cada um recebe em troca de seu trabalho é muito menor do que deveria ter recebido para trocar trabalho em condições de igualdade com todos os outros. No mecanismo das infindáveis trocas sociais trabalho-dinheiro-trabalho, o trabalho é subtraído da imensa maioria pela própria estrutura da troca realizada na vigência do estatuto jurídico da propriedade privada, e concentrado nas mãos de muito poucos, os legais proprietários dos meios de produção e troca.

Os textos de César e Rômulo, se lidos através desse prisma, demonstram em detalhes como o trabalho dos brasileiros é subtraído indevidamente durante a troca do trabalho de cada um dos que necessitam de energia elétrica pelo trabalho de outros que produzem meios de produção de energia elétrica ou produzem energia elétrica propriamente dita. Se uns trocam trabalho com outros, no caminho dessa troca estão os acionistas dos grupos que controlam as ações da Light, os quais subtraem legalmente a mais valia de outros e de uns. Demonstrando o complexo caminho que percorre uma das formas de assalto de mais valia nessa colônia estadunidense chamada Brasil, os textos podem ser utilizados para destruir factualmente a falácia ideólogica pós moderna da "inexistência" da mais valia.

Essa reflexão metodológia é importante pela conclusão a que leva. Existir mais valia em uma sociedade significa existir o assalto juridicamente legalizado ao trabalho humano, ou seja, significa existir escravidão, significa que a socidade atual, longe se ser composta por "cidadãos" iguais entre si perante a lei, é dividida, nacional e internacionalmente, entre os modernos escravos e os modernos senhores de escravos. De fato, analisando globalmente o planeta com olhos de ver, ouvidos de ouvir e cérebro de pensar, pode perceber facilmente a grande analogia do que hoje existe com a época da decadência do Império Romano. O que muda, fundamentalmente, é complexidade, integração e velocidade de informação no atual sistema mundial de estados, de onde a própria História avança muito mais rápido e, isso é o mais importante, de onde se abre a possibilidade objetiva de superação da própria escravidão.

Essa mudança não é pequena. Na época da decadência do Império Romano as possibilidades eram:

1.) a manutenção do império; ou

2.) sua queda nas mãos da barbárie, coisa que finalmente terminou por ocorrer, instalando-se a Idade Média.

Hoje, na época da decadência do Império Estadunidense, mas também na época onde a tecnologia avançou a tal ponto que possibilitou a globalização do planeta, as possibilidades são:

1.) a Barbárie, que será causada pela acelerada destruição dos recursos naturais do planeta, guerra, fome e doença; ou

2.) o Socialismo e, mais precisamente o Comunismo, uma sociedade onde o espírito e a ação humana seja capaz de romper de vez com todas as formas de apropriação indébita do trabalho alheio, dominar a anarquia do mercado e planificar uma relação tecnológica com a natureza do planeta Terra capaz de realizar a plena satisfação das necessidades das pessoas.

Tão importante quanto a questão metodológica que suscitam, os textos expõem informação suficiente para a defesa da necessidade e da justiça duma palavra de ordem "reestatização de todo o setor elétrico brasileiro, sem indenização aos atuais proprietários".

De fato, as informações contidas nos textos demonstram por A + B que:

1.) É perfeitamente possível a energia elétrica ser barata no Brasil mas tal só será possível se todo o setor elétrico for público, de onde a necessidade da reestatização;

2.) Os atuais proprietários do setor elétrico obtiveram o direito de propriedade sobre o que antes era estatal através de meios fradulentos, tendo dispendido mínimos recursos próprios e, também através de meios fraudulentos, obtiveram retorno monetário muito maior do que os eventualmente dispendidos na aquisição da propriedade, de onde a justiça de sua não indenização.

Se é necessária e justa, por que a reestatização sem indenizações do setor elétrico não é realizada? Segundo a ideologia oficial, porque "Lula não foi eleito para fazer revolução". De onde pode-se concluir que a justa e necessária disponibilização social de energia elétrica barata demandará uma revolução. Será mesmo preciso tudo isso?

A resposta concreta a essa pergunta só poderá ser conhecida concretamente se e quando amplos setores das classes trabalhadoras e populares tomarem como deles essa bandeira e se e quando se dispuserem a realizar amplas e consistentes mobilizações por ela. Se tal palavra de ordem, defendida hoje por uns poucos, se transformar em objeto de luta de milhões, aí saberemos ao certo se será necessária ou não uma revolução para sua concretização. Na Argentina, por exemplo, a reestatização foi realizada por um governo eleito dentro do Estado de Direito burguês, é bem verdade, mas não se pode utilizar tal fato para apagar da história a insurreição popular contra um outro governo eleito, considerado "de esquerda", que a prometeu, entre tantas outras coisas, e se negou a cumprir, pagando o devido preço pela sua traição.

Por que a energia elétrica é tão cara no Brasil? Por que os brasileiros, enganados e passivos, permitem que seja assim. Pagando caro pelo que custa pouco, o povo, e especialmente o povo mais pobre, transfere parte do dinheiro que obtém com seu trabalho para os bolsos dos anônimos capitalistas que detêm, nos EUA, a propriedade privada das ações da Light.

Poderá a energia elétrica ficar barata e acessível a todos? É possível, mas provavelmente irá demandar mais do que uma luta comum. Poderá demandar uma revolução social e política. Com tudo o que tais palavras trazem de direito e de deveres a cada um de nós.

Daí a importância do estudo atento dos dois textos da dupla César Benjamin e Rômulo Tavares Ribeiro. E daí, também, minha solicitação de sua máxima divulgação.


Descaminhos do setor elétrico, ou o hospício Brasil
César Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)
5 de abril de 2004

1. Começamos a escrever este texto. O computador está ligado, a luz acesa, o ventilador de teto ajuda a diminuir o calor. Estamos consumindo energia. Aqui, no Rio de Janeiro, ela é entregue em nossa casa pela Light, uma distribuidora que foi privatizada há cerca de seis anos. A Light precisa comprar energia de uma geradora. Na última vez em que negociou no mercado de geração, encontrou a oferta de Furnas, uma empresa estatal que opera usinas hidrelétricas; Furnas se propôs a entregar energia à Light pelo preço de R$ 50,00 o megawatt-hora (MWh). Encontrou também a oferta da Norte Fluminense, uma empresa privada que opera uma usina termelétrica; para entregar o mesmo megawatt-hora, a Norte Fluminense cobrou R$ 150,00.

A Light optou por comprar energia da Norte Fluminense. Primeiro motivo: para ela, essa opção é indiferente, pois as regras da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) permitem que as distribuidoras repassem aos consumidores 100% do preço que pagam às geradoras. Segundo motivo: a Norte Fluminense é do grupo Light. Assim, nós, consumidores, somos forçados a comprar a energia mais cara.

2. Fique calmo, estimado leitor. Você está apenas na porta do hospício. Pois, se neste instante formos visitar a usina termelétrica contratada pela Light, ela estará desligada, entregue às atenções de um sonolento grupo de vigias, entretidos talvez num jogo de damas. A eletricidade que estamos consumindo está sendo colocada na rede por Furnas, por ordem do Operador Nacional do Sistema (ONS), que coordena a operação física do sistema. O ONS tomou essa decisão porque viu que a eletricidade de Furnas é muito mais barata. Furnas, porém, não foi contratada pela Light, de modo que sua energia está sendo remunerada pelo preço do mercado livre, o qual está excepcionalmente baixo – apenas R$ 18,00 –, pois há sobra de energia no país.

Quando minha conta de luz chegar, eu pagarei à Light um valor que tem como base aqueles R$ 150,00 que ela contratou da Norte Fluminense, ou seja, de si mesma. A Norte Fluminense, que permaneceu desligada, repassará R$ 18,00 a Furnas, que produziu a energia. A diferença será inteiramente embolsada pelo grupo Light. Além de distribuidor, como se vê, ele é gigolô de energia. Com todo o respeito.

3. Os nomes e números citados acima são reais. A mesma situação repete-se país afora. É assim que funciona hoje o sistema elétrico brasileiro, que já foi referência mundial de segurança e racionalidade. Para conseguirmos entender como chegamos a isso, teremos de ver, muito sucintamente, a história desse sistema, o desastre da privatização feita por Fernando Henrique Cardoso, a situação encontrada pelo governo Lula e as decisões deste governo. É o nosso tema do mês. Preparem o estômago.

4. Quase 90% da capacidade de geração elétrica instalada no Brasil e 99% da energia elétrica consumida se baseiam em duas coisas gratuitas: a água das chuvas e a força da gravidade. Somos um país tropical de grande extensão, com rios caudalosos, com bacias hidrográficas distantes entre si, localizadas em regiões que têm diferentes regimes de chuvas. Por serem rios de planalto, de modo geral sua declividade é suave. Quando barrados, formam grandes lagos. São energia potencial. É só fazer a água cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata do mundo, de fonte renovável e não poluente, com recursos e técnicas totalmente brasileiros. Se as barragens forem construídas em seqüência, ao longo do curso de um rio, a mesma gota de água é usada inúmeras vezes antes de se perder no oceano.

Os místicos diriam que tudo isso é uma bênção; os técnicos, que é uma enorme vantagem comparativa. Ambos têm razão. A vida útil de uma usina hidrelétrica é ilimitada. A obra de construção civil, em princípio, é eterna como as pirâmides do Egito, e os equipamentos precisam ser substituídos a cada período de mais ou menos setenta anos de uso. O “combustível”, como vimos, é gratuito. O custo operacional, portanto, é baixíssimo. Como a quantidade de chuvas varia em cada ano e como no curto prazo o regime de chuvas está sujeito a oscilações imprevistas, fazemos reservatórios. O sistema brasileiro acumula água suficiente para cinco anos de operação, chova ou não chova. Nenhum país do mundo tem tanta energia estocada. Graças a ela, nosso sistema energético sempre funcionou pensando muito na frente. Quando era quase todo estatal, começava-se a construir uma nova usina quando a margem de risco atingia 5% no quinto ano, contado a partir do presente.

5. As chuvas também variam de região para região. Para aproveitar essa variedade, o sistema foi interligado por mais de 4 mil quilômetros de linhas de transmissão, do Rio Grande do Sul ao Maranhão. Um operador central tornou-se capaz de racionalizar o uso da água – e regularizar o curso dos rios – em praticamente todo o país. Os reservatórios situados em diferentes bacias hidrográficas, que não têm nenhuma ligação física entre si, passaram a funcionar como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do São Francisco e muito na bacia do Paraná, por exemplo, a usina de Paulo Afonso é orientada a colocar pouca energia na rede, de modo a economizar sua água que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensação. Ao colocar mais potência na rede, Itaipu cede água do rio Paraná, indiretamente, para o rio São Francisco. Nos lares, escritórios e fábricas, ninguém percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento de energia e a distribuição da água no território nacional em cada momento.

6. No Brasil, como se vê, as linhas de transmissão integram o sistema de produção de energia. Não são simplesmente acopladas a ele para fazer a eletricidade escoar até o consumidor. Ligando quase todo o território nacional, elas ajudam a fazer com que a capacidade de geração hidrelétrica brasileira, vista como um todo, seja 25% superior à soma da capacidade das usinas, vistas isoladamente.

Para produzir tamanha sinergia necessita-se, é claro, de uma operação coordenada do sistema. Coordenada, primeiro, em cada bacia, pois a decisão de produzir ou economizar energia (ou seja, verter ou represar água), tomada por uma usina situada a montante, define as condições de operação das usinas situadas a jusante. Tal necessidade de coordenação envolve também bacias diferentes, como vimos no exemplo de Itaipu e Paulo Afonso. Mais ainda: a coordenação é necessária não apenas à operação do sistema que já existe, mas também às decisões de investimento para sua expansão, pois a economicidade de uma usina nova depende de suas possibilidades de integração ao conjunto da rede. Tomemos o exemplo de Belomonte, no rio Xingu. Na estação chuvosa essa usina pode produzir 11 mil MWh; na estação seca, 1 mil MWh. Para avaliar se ela será econômica é necessário conhecer suas possibilidades de interação com as usinas da bacia do rio Paraná, que têm outro regime de chuvas.

7. A correta operação do sistema exige, pois, uma visão de conjunto no espaço e um largo horizonte de tempo (uma hidrelétrica leva, em geral, de cinco a sete anos para ser construída). A idéia de operar cada usina isoladamente ou de decidir isoladamente pela realização de um investimento novo não tem sentido no sistema elétrico do Brasil. Esta é uma especificidade nossa. Na maior parte do mundo a natureza não foi tão generosa, de modo que a produção de eletricidade baseia-se principalmente em usinas térmicas que usam carvão, gás ou petróleo. Elas, sim, funcionam isoladamente, sem sinergia. E são muito mais caras. Não acumulam combustível gratuito, pois têm de comprá-lo todos os dias no mercado; gastam muito em manutenção; precisam ser completamente reconstruídas a cada período de 25 anos; poluem o ambiente e emitem gases-estufa. Usinas nucleares têm algumas limitações semelhantes, são perigosas e produzem rejeitos radioativos. (Por precaução, o sistema tradicional brasileiro também contava com usinas térmicas de reserva, para serem usadas em situações excepcionais.)

8. Nós éramos felizes e sabíamos: desde sua implantação, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o sistema brasileiro tornou-se referência mundial. A oferta de energia segura e barata passou a ser uma conhecida vantagem do nosso país. O sistema poderia ser aperfeiçoado, é óbvio, como tudo na vida. Porém, nenhum, rigorosamente nenhum motivo de natureza técnica ou de racionalidade econômica exigiria alterar sua natureza.

Foi esse despautério que o governo de Fernando Henrique Cardoso resolveu fazer, sob orientação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. A existência de um setor energético nacional, estatal, planejado, eficiente, barato e de grande porte, em um país periférico, era uma afronta à modernidade neoliberal. A energia deveria ser tratada como uma mercadoria qualquer – o chuchu, por exemplo – e colocada sob controle do capital privado, o único que pode ser eficiente. De preferência estrangeiro, para que no ato da venda o país recebesse um punhado de dólares. Afinal, o Estado brasileiro estava endividado. Feitas as privatizações da siderurgia, da petroquímica, da Vale do Rio Doce, da Embraer, dos sistemas de telecomunicações e de transportes, entre outras, restavam os ativos do melhor sistema elétrico do mundo para abater uma diminuta fração dessa dívida. E, na medida em que abandonássemos a hidreletricidade, passando a priorizar usinas térmicas, criaríamos um bom mercado para as multinacionais do setor.

9. O sistema cooperativo e planejado, que funcionava muito bem, deveria pois dar lugar a um sistema concorrencial e mercantil. Tomada esta decisão, todos aqueles benefícios e vantagens do sistema brasileiro – o funcionamento em rede, a base hídrica, o horizonte de longo prazo, o papel ativo das linhas de transmissão, o fornecimento de energia barata – tornaram-se dificuldades a superar, pois não se ajustavam bem à lógica de operação do capital privado. Sendo impossível vender o sistema energético em bloco, ele precisava ser esquartejado, dilacerado, separado em pedaços, com se faz nos açougues com nacos de carne. Isso nos conduzia ao limiar da suprema imbecilidade: romper a sinergia do sistema e alterar sua base técnica para multiplicar as usinas térmicas (o Brasil só usou até hoje, no máximo, a metade do seu potencial hidrelétrico).

A história do sistema elétrico brasileiro nos últimos anos é a história da luta dos governos brasileiros contra as nossas vantagens comparativas e contra o conhecimento técnico que acumulamos. É a história de uma destruição, a destruição do Brasil. No caso de Fernando Henrique, foi uma luta em campo aberto, que será lembrada como um dos atos mais vis de traição nacional e que só arrefeceu quando seu governo conseguiu conduzir o país ao apagão de 2001. No caso de Lula, é uma marcha hesitante, ambígua, mas que poderá levar ao mesmo resultado.

10. Já contamos a história da reforma, e do subseqüente apagão, em outro artigo (“Foi loucura, mas houve método nela: gênese, dinâmica e sentido da crise energética brasileira”, publicado na revista Caros Amigos). Aqui, vamos direto ao que se passou depois. A reforma acabou numa esquizofrenia. Depois de idas e vindas, a operação física do sistema continuou centralizada, uma herança do modelo anterior. Ela é feita pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que determina quanta energia cada usina colocará na rede em cada momento e a que preço. O ONS não segue, nem respeita, nem sequer conhece os contratos feitos entre distribuidoras e geradoras. Ele toma decisões levando em conta, exclusivamente, a configuração física do sistema em cada momento. Uma empresa privada que compra ou constrói uma geradora não controla sua própria operação e não define quando e quanto vai produzir, nem mesmo se vai produzir. Ela é uma investidora em energia, e não uma operadora de usina. A usina serve apenas para que ela faça contratos, mas os contratos não a obrigam a gerar a energia contratada. (Por isso a Light pode contratar a Norte Fluminense, que permanece desligada, enquanto Furnas, mesmo descontratada, é obrigada pelo ONS a gerar.)

11. A reforma de Fernando Henrique nos prometia aumento de oferta: gerou racionamento. Prometia energia barata: entre 1995 e 2002, as tarifas subiram 182,6% para a energia residencial, 130,3% para a industrial, 130,1% para a comercial e 110,2% para a rural, enquanto a inflação acumulada no período foi de 58,68%. Prometia dinheiro estrangeiro: foi o BNDES que financiou a maior parte dos investimentos privados (ver, sobre isso, “O caso AES”, em apêndice a este texto). Prometia transferência de tecnologia num setor em que a tecnologia de ponta era a nossa. Prometia dólares para o Brasil, quando se sabe que geração e distribuição de energia são pagos em reais, de modo que a remessa de lucros das empresas estrangeiras vindas para esse setor passou a sangrar permanentemente as reservas brasileiras de divisas.

12. Tudo resultou, é claro, numa completa desordem física, legal e institucional. Depois de privatizar todas as distribuidoras rentáveis e parte do sistema de geração, a reforma teve de ser interrompida com o apagão de 2001. Estabelecida a emergência, o consumo foi duramente reprimido, com grandes prejuízos para os consumidores e a economia nacional, enquanto mundos e fundos eram oferecidos para o capital privado investir com urgência. Este capital interessa-se muito mais por usinas térmicas do que por hidrelétricas, pois naquelas o investimento e o prazo de conclusão das obras são muito menores. A amortização é mais rápida. (É verdade que a energia gerada é muito mais cara, mas isso é um problema do consumidor.)

Fernando Henrique enfrentou, porém, um problema: se, passada a emergência, o mercado brasileiro seria atendido, como sempre fora, pelo sistema hidrelétrico, como abrir espaços para as térmicas desejadas pelo capital privado? A solução encontrada foi ordenar que, a partir de 2003, as geradoras estatais fossem obrigadas a descontratar anualmente 25% de sua energia, que passaria a ser oferecida no mercado livre. Essa regra entrou em vigor já no governo Lula, que a respeitou. (Fica claro, também aqui, que quando os governos brasileiros dizem que respeitarão contratos, referem-se apenas aos contratos que interessam ao capital privado; as estatais de energia foram obrigadas a abrir mão de contratos que lhes garantiam mercado. Furnas, por exemplo, que é capaz de gerar 7.756 MW de energia barata, tem neste momento 3.700 MW descontratados por imposição do governo. O consumidor sai perdendo, pois essa energia barata é substituída nos contratos pela mais cara, embora, como vimos, continue a ser gerada e distribuída pelos preços do mercado livre.)

13. Quando Lula assumiu, em 2003, encontrou o cenário de 2001 invertido: excesso de energia ofertada (pois a chuvas regularizaram a oferta hidrelétrica e várias térmicas começaram a operar) e brutal contração da demanda (pois o consumo nunca retornou aos níveis anteriores e a economia entrou em recessão). Tal contração, da ordem de 25%, é uma anomalia, pois em situação normal, em um país com o nível de desenvolvimento do Brasil, o consumo de energia cresce sempre mais do que o PIB. Mas, graças a ela, parece estar afastada a possibilidade de novo racionamento até, pelo menos, 2007. Com energia sobrando, as térmicas tendem a permanecer desligadas, mas continuam muito lucrativas. Liquidam seus contratos comprando energia das hidrelétricas estatais, a preço vil.

14. O novo governo tinha nessa área um dos seus pontos fortes. A competência do grupo de energia do PT sempre foi reconhecida. Antes das eleições de 2002, ainda trabalhando no âmbito do Instituto da Cidadania, o grupo reafirmou antigos compromissos: recuperar a visão de conjunto, típica de um sistema cooperativo, tratar a energia como serviço público, valorizar a dimensão do planejamento, priorizar a menor tarifa, fortalecer a Eletrobras, e assim por diante. A posição que Fernando Henrique já havia tomado, de interromper o processo de privatização do setor, foi confirmada com mais ênfase e mais clareza pelo novo governo. Ele resolveu, no entanto, não questionar as privatizações já realizadas e respeitar escrupulosamente todos os contratos com o capital privado, mesmo os leoninos. A expectativa era de que este capital cobrisse entre 50% e 60% dos investimentos previstos para os anos seguintes. Além disso, o governo tratou de reconstruir uma arquitetura legal e institucional para o setor, no contexto de um modelo misto, que recentemente começou a ganhar forma final, com a Medida Provisória n. 144, em via de tramitação no Congresso.

A posição cautelosa da equipe de transição justificava-se pelos seguintes argumentos: (a) a capacidade de financiamento, por parte do Estado, estava debilitada, não sendo pois de todo ruim que se contasse com um aporte de recursos do setor privado; (b) seria uma temeridade questionar os contratos assinados durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, que envolviam muitos bilhões de dólares, pois isso daria lugar a contenciosos jurídicos que se estenderiam por muito tempo, paralisando os investimentos; (c) o modelo estatal anterior também padecia de falhas, concentrando poder excessivo em mãos da burocracia estatal e das grandes empreiteiras.

15. Tendo como ponto de partida o modelo formulado pelo Instituto da Cidadania, o governo Lula passou um ano negociando com representantes de empresas privadas. Fez muitas concessões. A proposta que consta da MP 144 estabelece as bases de uma legislação de caráter híbrido, ultracomplexa, pouco compreendida e ainda dependente de muita regulamentação posterior (quanto mais híbrido o modelo, mais complexo ele tende a ser). Técnicos com larga experiência na gestão estatal estão confusos, e o setor privado também reclama, dizendo que o “risco regulatório” continua a ser muito grande. Ninguém se sente plenamente atendido. Os chamados “custos de transação”, no novo modelo, são muito altos, com a multiplicação de órgãos e instâncias. As equações são complicadíssimas. Cada afirmação feita na nova lei parece ser negada em seguida, seja por outras afirmações, seja por regras excepcionais, inseridas ad hoc. É provável que juristas e advogados tenham muito trabalho.

O que se pode entender é que o planejamento da expansão do setor elétrico ficará sob a responsabilidade de um novo órgão federal. Os novos empreendimentos, definidos por este órgão, serão oferecidos, em princípio ao setor privado, em licitações nas quais prevalecerá o critério das menores tarifas. Um agente de comercialização vai gerenciar os contratos, que deixarão de ser individuais e passarão a ser de todas as geradoras com todas as distribuidoras. A Eletrobras continuará a ser tratada como uma empresa a mais, entre as outras, como se fosse privada. A chamada “energia velha” – ou seja, a energia barata, produzida por hidrelétricas já amortizadas, que continuam estatais – será usada para rebaixar as tarifas médias do sistema. E o setor privado permanecerá sendo considerado o principal investidor (o que parece ser uma temeridade, pois ninguém pode garantir que ele resolva mesmo investir, num contexto em que são muito altos os riscos macroeconômicos, inclusive o cambial, e os custos de oportunidade).

16. Entre os técnicos, parece haver consenso de que estamos longe de uma solução para a crise a que o setor foi levado pela irresponsabilidade do governo de Fernando Henrique. Há problemas de vários tipos. Como vimos, hoje sobra energia, mas isso é uma realidade passageira. Já preocupa o fato de que os investimentos – especialmente os do setor privado – estão paralisados. A Eletrobras investiu R$ 3,0 bilhões em 2003, quantia muito insuficiente, e (contando com Itaipu) recolheu cerca de R$ 4,5 bilhões ao Tesouro para engordar o superávit primário. Poderia, pois, investir pelo menos o dobro.

O papel da Eletrobras está, no mínimo, confuso. Conforme a visão original do grupo de energia, ela deveria ser uma espécie de “Petrobras da eletricidade”, ou seja, uma empresa forte, nacional e estatal, comprometida com o futuro do país, não monopolista, capaz de liderar o setor, estabelecendo parcerias nas situações adequadas. As empresas da holding têm capacidade técnica e financeira, enorme patrimônio e endividamento quase zero. Poderiam alavancar muita coisa. Mas, não é isso o que está ocorrendo. A Eletrobras está enfraquecida, tolhida, sangrada em recursos pelo superávit primário, tratada como se fosse um problema, cheia de micos pretos na mão e proibida de liderar parcerias. Quando pensa em se soltar, é vista com desconfiança.

O problema é grave porque, como vimos, investimentos em energia demandam muito tempo. Para afastar o risco de novos apagões depois de 2007 é necessário que as obras se iniciem sem demora. Elas deveriam estar em pleno curso, pelo menos, em 2005. Há investimentos feitos pela Petrobras (em térmicas a gás) e algumas hidrelétricas estão sendo construídas, para uso próprio, por consumidores eletrointensivos. É pouco. O setor privado continua sem corresponder às expectativas que o governo Lula deposita nele.

17. Mas a principal crítica que se pode fazer às ambigüidades do governo no setor de energia é de caráter estratégico. Para discuti-la, usaremos livremente as idéias de Leslie Afrânio Terry, um dos mais brilhantes técnicos do setor. Leslie enviou para um de nós [César Benjamin] um conjunto de notas, reunidas sob o título “Desenvolvimento econômico e energia velha no Brasil”. Sua morte súbita e inesperada impediu que debatêssemos essas idéias com ele, como era a intenção, e tampouco sabemos se foram publicadas em algum lugar. Relidas agora, as notas parecem proféticas.

Como diz o título, Leslie explora as potencialidades futuras abertas pelo aumento da oferta da chamada “energia velha”, que por definição é exclusivamente de origem hidrelétrica. “A produção das usinas hidráulicas já amortizadas”, escreveu, “vem sendo designada como ‘energia velha’. Sua existência reduz custos de produção (e tarifas) e representa importante vantagem comparativa da sociedade brasileira. (...) A ‘energia velha’ deve ter sido responsável, nesta virada de século, por uma redução de quase 30% no custo de produção da energia elétrica no Brasil, relativamente ao custo marginal de longo prazo. Este percentual só tenderá a aumentar, na medida em que o crescimento da demanda for se saturando, como decorrência dos estágios superiores de desenvolvimento atingidos. Isso só vale, naturalmente, se o Brasil persistir na opção hidrelétrica. (...) Extrapolando-se o raciocínio ao limite, pode-se vislumbrar, no futuro, o fornecimento exclusivo de ‘energia velha’ à sociedade brasileira, reduzindo-se então o custo da eletricidade quase que apenas aos custos de transmissão e distribuição.”

18. Leslie trabalha em seguida com dados relativos à superfície, demografia, produto nacional bruto, densidade territorial de produção e consumo de energia elétrica, sempre comparando a situação brasileira com a de um grupo de onze países europeus. Admite hipóteses consagradas na literatura especializada, para então verificar o que aconteceria se, em 2050, o Brasil atingisse um padrão de desenvolvimento semelhante ao que os países europeus têm hoje (renda per capita de cerca de US$ 25 mil). A taxa de expansão do consumo de energia segue sendo superior ao crescimento do PIB por um período, mas, como sempre acontece, essa relação começa a se inverter entre 2010 e 2015, quando a economia brasileira atinge novos patamares de desenvolvimento, menos intensivos em energia. É uma hipótese perfeitamente plausível, que corresponde à experiência histórica.

Ele verifica então que o consumo per capita de energia elétrica no Brasil, em 2050, se estabilizaria num nível três vezes superior ao atual, demandando uma oferta total que corresponde aproximadamente ao potencial hidrelétrico brasileiro, tal como estimado no Plano 2015 da Eletrobras. A intensidade de energia elétrica na formação do PNB brasileiro seria quase duas vezes e meia menor que a atual. Com bases nesses parâmetros, calcula a evolução, no tempo, do custo médio de produção de energia elétrica, que vai se reduzindo pelo aumento da ‘energia velha’ disponível. Eis a sua conclusão: “Com as hipóteses feitas, ao atingir em 2050 a população e um nível de desenvolvimento semelhantes ao dos onze países europeus nos dias de hoje, a sociedade brasileira disporia de energia elétrica produzida com custos equivalentes a 20% do seu valor normal. Em mais dez ou quinze anos, os custos atingiriam níveis meramente simbólicos. (...) Para dispor permanentemente de energia elétrica quase gratuita [na quantidade necessária e por tempo indefinido], o Brasil precisará utilizar cerca de 2,1% do seu território na formação de represas e lagos, sendo 70% dessa área localizada na Amazônia. É uma área equivalente à que se costuma desflorestar na Amazônia em apenas uma década, em nome de projetos agropecuários de valor discutível, ou mesmo sem propósito nenhum.”

19. Quem financiaria isso? O próprio setor elétrico, responde Leslie. Calculando receitas e despesas do setor – incluindo, no cálculo, o ressarcimento de depreciação contábil anual de 1/30 do capital investido, remuneração anual de 12% ao ano ao capital remanescente, 25% de imposto de renda e 9% de contribuições sociais – ele diz que “o setor teria plena capacidade de autofinanciamento ao longo de todo o tempo, transferindo sempre ao consumidor toda a vantagem da ‘energia velha’”. “A participação significativa e sempre crescente da ‘energia velha’ [desde que preservada a opção preferencial pela hidreletricidade, o que implica um modelo com predominância do Estado] parece não ter tido ainda a sua importância devidamente apreciada. (...) A competição em mercado irá elevar o valor de comercialização de toda a produção, incluída aí toda a ‘energia velha’ ao valor, bem mais elevado, do custo marginal de produção. (...) Não parece haver qualquer razão para subtrair à sociedade brasileira tão importante vantagem comparativa e permitir sua pura e simples apropriação pelos produtores, sem qualquer contrapartida. Em se desejando proporcionar a vantagem de baixos preços de energia elétrica à sociedade brasileira, será necessário garantir que os benefícios da ‘energia velha’ sejam repassados ao consumidor. Como os mecanismos normais de mercado não se mostram apropriados, isso precisará ser conseguido por meio de regulação.”

20. Perdoem as longas citações. Além de constituir uma homenagem a Leslie Terry, elas mostram o extraordinário potencial brasileiro, em energia elétrica, no século XXI. Se fizer as opções corretas, o Brasil poderá ter energia quase gratuita, de forma segura e por tempo indefinido, a partir de meados do século, o que constituiria um extraordinário salto qualitativo em seu processo de desenvolvimento econômico e social. Não nos faltam, para isso, nem dotação natural de fatores, nem capacidade técnica, nem fontes de financiamento. Falta retomar um projeto nacional consistente e sustentá-lo no tempo. Eis aí o problema. Na questão energética, como em tantas outras, o governo Lula está acertando aqui e acolá no varejo, mas errando terrivelmente no atacado. O caminho que escolheu para o setor elétrico – um caminho híbrido e confuso, definido por injunções de curto prazo e completamente permeado pelos interesses privados – não configura uma estratégia de longo prazo no rumo acertado.

Projeto de Análise da Conjuntura BrasileiraLaboratório de Políticas Públicas da UERJFundação Rosa Luxemburgo

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